70 VEZES 7
A liturgia de hoje trata de um tema que muitas vezes é espinhoso, mas que, no entanto, é fundamental em nossa vida. Trata-se da vivência do perdão… Fazemos a experiência diária de nossa necessidade de receber o perdão de Deus. No entanto, muitas vezes sentimos dificuldade em exercer o perdão para com o nosso próximo… Vejamos o que a Palavra de Deus nos diz hoje, para que possamos ir nos exercendo para ultrapassar essa contradição que muitas vezes carregamos no coração.
A Primeira Leitura, tirada do livro do Eclesiástico (27,33 – 28,9), não mede palavras… Começa com uma frase quase que violenta: “O rancor e a raiva são coisas detestáveis”… E de fato, convenhamos, a afirmação é verdadeira… No entanto, ao longo de nossa vida, quantas vezes fomos objeto – ou, até mesmo, sujeito – de rancor e de raiva… Mas, se olharmos estes sentimentos com o olhar de Deus, vemos que são, realmente, detestáveis…
O tema desta Primeira Leitura continua esta mesma reflexão, e põe a nu nossas próprias contradições: “Se alguém guarda raiva contra o outro, como poderá pedir a Deus a cura? Se não tem compaixão de seu semelhante, como poderá pedir perdão de seus pecados?” Somos seres fracos, somos todos pecadores, mas podemos tentar ser menos contraditórios, menos inconsequentes…
Todos nós conhecemos muito bem a oração que Jesus ensinou a seus discípulos quando estes lhe pediram que os ensinasse a rezar. Todos aprendemos desde crianças essa oração que rezamos todos os dias, às vezes até mais de uma vez por dia. Mas será que prestamos bastante atenção a duas palavrinhas altamente perigosas que pronunciamos cada vez que rezamos o Pai Nosso?… Essas duas palavrinhas são: “assim como”… Por meio delas, nós nos colocamos diante de Deus como a medida segundo a qual pedimos o seu perdão. Na realidade, cada vez que rezamos o Pai Nosso, estamos dizendo a Deus: “Perdoa meus pecados da mesma maneira com a qual (ou tanto quanto) perdoo a quem me fez algum mal”… Se sou uma pessoa que não guarda rancor, que é capaz de oferecer um perdão sincero a quem me prejudicou em alguma coisa ou a quem me fez sofrer, estou pedindo a Deus que me trate da mesma forma. Mas se sou uma pessoa rancorosa, vingativa, que nunca se esquece de uma ofensa recebida, incapaz de reatar um relacionamento com quem me tenha feito algum mal, será que Deus vai tomar essa minha atitude por medida e me tratar dessa mesma forma inflexível?…
Mas, não… Isso nunca vai acontecer, pois, como diz o Salmo de hoje (Sl 102 (103), “o Senhor é bondoso, compassivo e carinhoso”. Sim, esse é o retrato de Deus… O Salmo nos leva a afirmar a maneira pela qual Deus se relaciona conosco e nos leva a “bendizer seu santo nome”. Sim, porque ele “te perdoa toda culpa”, “cura toda a tua enfermidade”, “salva a tua vida” e “te cerca de carinho e compaixão”. Nosso Deus é um Deus Amor. Nunca nos deveríamos cansar de louvá-lo e bendizê-lo por todo o amor e carinho que temos experimentado ao longo de nossa vida… Seria bom tomarmos um tempo para, tranquilamente, repassar na memória e no coração fatos e momentos de nossa vida em que sentimos a proteção, o perdão, o amor e o carinho de Deus para conosco, e rezar este salmo de ação de graças por tudo o que temos recebido dele.
A Segunda Leitura (II Rm 14, 7-9) deste domingo é muito breve, mas contém palavras que vão longe… “Se estamos vivos, é para o Senhor que vivemos; se morremos, é para o Senhor que morremos. Portanto, vivos ou mortos, pertencemos ao Senhor”. Sim, vivemos para o Senhor, pertencemos a ele.Ele é o Pai que cuida de cada um de seus filhos e filhas, que leva em conta nossas necessidades, que nos encoraja em nossas realizações.
E qual é o pai que não se alegra ao ver que seus filhos “puxam” a ele, reproduzem seus traços, procuram viver de acordo com o seu exemplo, seguem os seus passos? O Salmo traçou um bonito retrato de Deus; como vimos, ele é “aquele que perdoa, que cura que salva, que cerca de carinho e compaixão” a todos os seus filhos. Assim espera ele que sejamos nós também, já que “vivemos para ele”…
Finalmente, no Evangelho (Mt 18, 21-35), Jesus condensa numa parábola toda a reflexão que a liturgia deste domingo nos propõe. Nas diversas traduções da Bíblia, essa parábola é conhecida como a parábola “do servo cruel”, ou do “servidor sem misericórdia”. Mas poderia muito bem ser também conhecida como a parábola “do homem inconsequente”… Vejamos: Um servo devia uma grande quantia a seu patrão (isso é uma situação verossímil). Um dia, o patrão cobre essa dívida (o que é possível, e até normal). O servo, porém, não tinha como pagá-la (o que é compreensível). O patrão ameaça usar um tipo de cobrança costumeiro na época (o que nos parece duro, mas que, para a época, era normal). O servo pede compreensão, um prazo (reação normal). O patrão tem compaixão e perdoa a dívida do servo (o que é inesperado, e foge do padrão de comportamento usual).
Até aqui, temos a história de um patrão que sabe ser compreensivo e bondoso. Mas a história não termina aqui…O problema aparece na segunda parte da história. Esse mesmo servo tinha um companheiro que lhe devia uma quantia, muito menor do que a que ele devia ao patrão. O relacionamento desse servo com o companheiro passa por etapas semelhantes ao do seu relacionamento com o patrão, mas o desfecho é bem diferente: o servo vai ao encontro do companheiro e faz a cobrança da dívida; o companheiro não tem como pagar e pede compreensão, um prazo… Mas o servo não atende ao pedido do companheiro e o coloca na prisão por não pagamento da dívida…Vindo a saber disso, o patrão ficou indignado, retirou o seu perdão e colocou o servo na prisão “até que pagasse toda a sua dívida”.
Jesus contou essa parábola para ilustrar a resposta que daria a Pedro. Assim é que o sentido da parábola está no início do texto. Pedro pergunta a Jesus quantas vezes deveria perdoar a seu irmão. Julgando-se uma pessoa boa, pergunta se sete vezes já seria o suficiente… Pedro, certamente, deve ter levado um susto quando Jesus lhe respondeu, dizendo que sete vezes não seria ainda o suficiente: é preciso perdoar setenta vezes sete… Com essa resposta, Jesus afasta de Pedro – e de nós também – toda tentação de contabilidade… Perdão não é coisa que se conte… Não existe uma “cota” para o perdão… O que ele pede de todos os seus seguidores é que perdoemos sempre… Assim como o Pai nunca diz que já nos perdoou suficientemente, assim também saibamos – ou, pelo menos, tentemos – perdoar sem limites…
O Senhor nos pede algo que é desafiador. Somos fracos… Sabemos que não é fácil perdoar sempre. Confiemos na graça. E, como diz a Oração de hoje, abramo-nos para que ele nos transforme: “Ó Deus, criador de todas as coisas, volvei para nós o vosso olhar e, para sentirmos em nós a ação do vosso amor, fazei que vos sirvamos de todo o coração”.
Irmã Regina Maria Cavalcanti – Religiosa da Assunção